O DN acaba de publicar um
artigo da Lusa sobre a Agência de Gestão e Cooperação (AGC), criada para gerir uma zona de exploração das águas territoriais colocadas em comum, entre o Senegal e a Guiné-Bissau. Trata-se de um assunto complexo, e por isso é desculpável que a superficialidade da abordagem jornalística não consiga penetrar nem traduzir aquilo que está em cima da mesa. O artigo não contem nada de novo, que não seja já do domínio público. Não constituindo novidade, devemos questionarmo-nos quanto à sua intencionalidade. Aparentemente, a mensagem é a de que o Presidente da República pretende favorecer a percentagem relativa aos hidrocarbonetos, e que o atraso nas negociações está a adiar o interesse de várias companhias internacionais de prospecção.
Vamos primeiro debruçar-nos sobre algumas precisões necessárias, para depois avançarmos com aquilo que, na nossa opinião, deveria ser o conteúdo de uma autêntica notícia sobre este assunto.
Afirma-se que a percentagem em litígio "ficou acordada na sequência de litígios judiciais em tribunais internacionais para os quais os dois países recorreram após disputas fronteiriças herdadas do colonialismo". A formulação é manifestamente infeliz. Para aqueles que conhecem o caso (e ainda há bem pouco tempo foi lançado um livro sobre o tema), foi precisamente o contrário. O que se herdou foi um acordo assinado (por troca de simples notas diplomáticas e quando a França já não dispunha sequer de legitimidade para o fazer, se considerarmos como verdadeira - trata-se de outra confusão - a data de 4 de Abril como a da independência do Senegal) entre as potências coloniais que estabelecia uma delimitação marítima (apenas) até às 12 milhas. A disputa não foi portanto herdada, mas estava aparentemente sanada (em claro desfavor da futura Guiné-Bissau, e sabe-se lá a troco de que contra-partidas). A disputa surgiu com a independência do novo Estado da Guiné-Bissau e a tentativa de delimitação da fronteira marítima por reivindicação do paralelo (ou azimute 270º, critério de fixação de todas as fronteiras congéneres para Norte) e com a descoberta tardia (e por mero acaso), por parte do Senegal, em 1977, dessa troca de notas já referida. Faltaria igualmente referir que o recurso se tratou num tribunal específico, de arbitragem.
Outra imprecisão consiste em que, quando se refere a "denúncia formal", por parte do Presidente José Mário Vaz, que ocorreu no contexto de uma Comissão Interministerial expressamente criada para o efeito, se dá a entender ser iniciativa espontânea do Presidente, omitindo que o Acordo que está na origem da AGC tinha o prazo de 20 anos e previa a sua renegociação findo esse prazo, que expirara, sendo portanto naturalmente e na ordem das coisas o momento adequado para tal. A denúncia destinava-se apenas a prevenir que o Senegal invocasse, por falta de iniciativa da parte guineense, a extensão tácita do Acordo por igual prazo.
Para além de não se compreender qual a base em que foram efectuadas as contas de percentagens cedidas quando se afirma que "A Guiné-Bissau dispensou 46% do seu território marítimo (incongruência, pois território é em terra, como a própria raiz da palavra indica, eventualmente poderiam referir "águas territoriais") para constituir a ZEC e o Senegal 54%", uma vez que obviamente estas dependem da distância considerada às linhas de base, a formulação induz em erro o leitor, pois a referência é à área da ZEC e não ao "território" original. Parece assim que a zona comum engoliu mais de metade das águas territoriais do Senegal, o que não é o caso como facilmente se constata pelos mapas apresentados. No entanto, o mais grave de tudo isto, erro de palmatória quanto aos interesses da Guiné-Bissau (que a Agência noticiosa portuguesa deveria ter especial atenção em acautelar), é precisamente que a Guiné-Bissau nunca reconheceu nem prescindiu dos seus direitos ou reivindicações, a solução AGC vindo apenas para salvaguardar um desenlace desfavorável da sentença pronunciada pelo tribunal arbitral (e, para todos os casos, conforme declaração do seu presidente, aplicável apenas até às 12 milhas, não inibindo a reivindicação futura para além desse limite). Ou seja, não existe qualquer delimitação fronteiriça marítima, pelo que não se pode afirmar que "o Senegal dispensou" qualquer parte, ou quantificar essa parte.
Está truncado o parágrafo que refere que "Desde aquela altura, Bissau e Dacar têm vindo a conversar para obtenção de um novo acordo que está a impedir o início da abertura de novos furos, indicaram à Lusa fontes que acompanham o processo negocial entre os dois países". Faltou qualquer coisa como "o atraso nas negociações" para alimentar o "está a impedir". Este é realmente o ponto informativo, e, para ser uma verdadeira notícia, deveriam referir que já houveram rondas negociais, que a preparação técnica e qualificação jurídica dos negociadores guineenses se revelou muito superior à dos seus congéneres senegaleses, que há cerca de um ano que se deveria ter reunido nova ronda, coincidindo com uma visita do Presidente do Senegal a Bissau. Tanto a visita presidencial como a ronda negocial foram adiadas (e assim continuam, até hoje). A firmeza e sustentabilidade da posição guineense deverá conduzir a um resultado muito positivo para os interesses guineenses no Acordo de exploração comum, em bases mais equitativas. Mas, para que isso aconteça, deverão ser separadas as águas, entre os interesses superiores da nação e eventuais considerações de política conjuntural, bilateral e multilateral, no seio da CEDEAO.
No primeiro mapa, assinala-se a amarelo a ZEC. No segundo mapa, as delimitações marítimas para Norte. No terceiro e último mapa, a delimitação reivindicada pelo Senegal com base na troca de notas diplomáticas entre Portugal e a França em 1960: quem, em Cabo Roxo, se virar para Norte, a direcção de separação é indicada pelas 8h no seu relógio (azimute 240º).