sábado, 10 de março de 2018

Momento crucial na Zona Zero

José Carlos Schwarz, o genial cantor guineense cujo 40º aniversário da morte a RTP África assinalou no dia 27 de Maio do ano passado, com um programa no qual marcou presença a sua viúva e o jornalista Tony Tcheka, contou igualmente com um contributo musical do seu filho, o qual confessou ter assumido tardiamente a sua vocação, ao optar por seguir as passadas do pai: dedicou-se à música, mesmo sabendo das dificuldades dessa opção, pois sentia como uma grande responsabilidade a reminiscência do nome paterno.

Remna Schwarz lançou um primeiro álbum há quatro anos, Saltana, que classifica como sobretudo influenciado pelo rap e pelo reggae. No entanto, a recepção não foi muito boa, e reconhece que ele próprio não se revê já nesse trabalho, ainda imaturo. Tem a hombridade de confessar que "de cada vez que ouço o Saltana não consigo realmente curtir, estou sempre a encontrar erros, a criticar", na entrevista sobre o seu novo álbum, Zona Zero, a pretexto da sua pré-apresentação na cidade da Praia, em Cabo Verde, no passado dia 8 de Dezembro, no espaço curiosamente intitulado Zero Point (segundo o seu criador, o arquitecto Alex Dias, foi inspirado no conceito da física quântica, Zero Energy Point, de Nicolau Tesla, o qual defende que há uma quantidade impressionante de energia no próprio vácuo).

Apesar de ter nascido no Senegal, de viver em Cabo Verde, de ter passado pela América e de ir muitas vezes a Portugal, é interessante notar a assunção do "nós" (guineenses) no seu discurso, sempre na primeira pessoa do plural. O novo álbum Zona Zero é essencialmente um reencontro com o pai, um retorno às raízes continentais, à Guiné-Bissau. Conta com as participações especiais de vários artistas guineenses, Karyna Gomes, Eneida Marta e Manecas Costa, sendo cantado em crioulo guineense. Num outro artigo publicado por ocasião dessa pré-apresentação, o cantor anunciava a sua intenção de ajudar a forjar uma "nova visão de África". Aparentemente, não herdou do pai apenas o gosto pela música, mas também pela intervenção.

Hoje, dia 10 de Março, concedeu uma entrevista à Agência Lusa, que recebeu tratamentos diversos.

O portal Sapo focou-se essencialmente nos aspectos musicais. Remna defendeu que tem dificuldade em classificar qual o género do seu trabalho musical e que o seu público são sobretudo pessoas de mente aberta: "Hoje, o problema é que tens gavetas: isso é morna, coladeira, batuque, e quando fazes um estilo completamente fora disso, há um choque, primeiro com os ouvidos, depois com a aceitação, porque a música tem de entrar e se não tens os códigos para decifrar é difícil. Mas se já tens a mente aberta, ouves muita música lá fora, consegues perceber e ter uma sensibilidade para outros caminhos musicais, isso é o meu público".

Realmente a Guiné-Bissau é uma potência musical, atendendo à sua pequena dimensão territorial e humana. Caso para dizer "pequena no tamanho mas grande na fama". E a música, associada à letra, é sem dúvida uma ferramenta de mudança do mundo, pela visão que oferece. Remna, que já defendera que a principal diferença do seu novo álbum em relação ao anterior reside na grande aposta ao nível da letra, acrescenta que o guineense gosta de "falas, formas de dizer, de imaginar, falar sobre o mundo." 

É esse pendor político ao qual a TSF dá sobretudo destaque. O entrevistado "lamenta que a instabilidade política esteja a impedir o país de se desenvolver, mas encontra sinais de esperança (...) sempre que visita a Guiné-Bissau. Há muitos artistas que (...) têm sempre uma mensagem de esperança, estão sempre a celebrar a vida, sempre com um posicionamento forte, críticas sociais e políticas muito fortes nas letras das músicas". A frase que tanto a TSF como o Diário de Notícias destacam em título é "os conflitos pessoais estão a ter consequências desastrosas", a que o artista acrescenta "em termos de imagem que estamos a promover no mundo". Ou seja: enquanto por um lado, a música define positivamente a guineendade, por outro, a política contribui para a péssima ideia que se faz do nosso país no exterior.

É pena que não tenham perguntado ao Remna Schwarz a razão da escolha do título. Talvez essa fosse uma chave, para decifrar a sua tomada de posição. O que é esta Zona Zero?

Zona Zero foi o termo escolhido para os locais do impacto das bombas atómicas, nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, que acabaram com a Segunda Guerra Mundial, que talvez possamos relacionar com o Ground Zero, aplicado às torres gémeas do WTC, do atentado de 11 de Setembro de 2001. Representam um trauma. Uma pesquisa no Google permitiu-nos descobrir que é também o nome de um grupo musical brasileiro. Mas é também o título de uma canção de Justino Delgado, que lembra a Guerra Colonial.

Zona Zero era o código para referir Bissau, no tempo da luta pela independência. Era o objectivo final, conquistar a capital. Mas a tomada de Bissau, que aparentemente Amílcar Cabral parecia querer refrear, representou igualmente um presente envenenado. O próprio líder tinha avisado para a ganância do poder, quando tentara prevenir para os riscos: "Não pensem que vão todos mandar em Bissau". Cabral não viveu o suficiente para assistir, e criou-se uma grande clivagem, reflectida no próprio nome do país, numa quase oposição entre a Guiné e Bissau, entre o mato e a praça. Para o ilustrar, recorramos a dois exemplos, entre muitas reflexões que já foram produzidas sobre o assunto. 

Num artigo, datado de 2012 e intitulado de "Racionalizar o pensamento guineense", da autoria de Augusto Tchuda, escrevia-se que "a moda dos ditos civilizados da praça mal arranjada de Bissau, que pelo facto de terem aí nascido e ter sido capital, pensam que só a eles compete decidir os destinos de um universo de aproximadamente 1.600.000 guineenses. Infelizmente, os guineenses, para justificar as suas incapacidades procuram bodes expiatórios, senão vejamos: de 1974 à 1980, quando os naturais da referida Zona Zero, concluíram que afinal podiam ser eles a conduzir os destinos do país (...) abriu algibeiras e panças, aos Senhores da Zona Zero, destruiu-se tudo, mas tudo, na alusão de se tratar de projectos ambiciosos, nem outros que não fossem ambiciosos vimos, tendo por consequência um país no fosso. Até hoje, não há ninguém que o resgate daí. Começou-se a assistir a matanças, quando grandes homens da etnia horizontal foram levados a cemitérios anónimos. (...) É bom a partir de já termos em conta que a horizontalidade daquela etnia, nunca foi motivo da Guiné-Bissau estar onde está. Pois seria ridículo prestar respeito a um chefe a quem por afinidade é confiado determinado cargo público, que apesar disso a sua competência técnica é questionável, não obstante isso exerce ainda com arrogância e altivez a função que mendigou. Por isso, não hesitaria em dizer aos nossos irmãos cabo-verdianos, que merecidamente mostraram que nunca foram aquilo que os camaradas da Zona Zero diziam. (...) Da mesma forma, a sociedade horizontal, que todos conhecem pela sua humildade e generosidade não é, nem nunca será o maior problema da Guiné-Bissau, sempre respeitou as culturas homólogas com consciência da sua diversidade. A Paz é sinónimo de respeito pelas ideias de cada um, pela diversidade de ideias, pensando nos valores sociais, independentemente de alguém ter nascido onde quer que seja, é Guineense."

No seu livro "O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau", Moema Parente Augel, escreve na página 294 que "Se concordamos que a nação seja uma comunidade política imaginada, admitimos igualmente ser ela constituída a partir do discurso. A auto-reflexão que se conheceu na Guiné-Bissau, na cena pública, até aos anos noventa, foi quase apenas a dicção hegemónica, sob a forma de discursos oficiais. Interessa fazer passar sua própria visão do passado, elaborando um discurso excludente, unívoco, a partir da estratégia de lembrar factos, omitindo outros. Os ideais de nacionalidade e de cidadania eram transmitidos ao povo pelos meios de comunicação disponíveis. A imprensa e sobretudo a rádio, num país de tantos iletrados, foram instrumentos de propaganda e de doutrinação, primeiro do Partido clandestino, depois do Partido vencedor e único, o PAIGC. Já me referi ao comportamento das classes dominantes guineenses, apropriando-se do prestígio devido à participação na luta de libertação, dele se servindo para legitimarem os seus actos e se conservarem no poder. Ter estado no mato justificava todo o tipo de desmando e abuso de autoridade, sendo atenuante para derrapagens morais e falta de capacidade. Nas décadas de setenta e oitenta, esse estado de coisas era extremo. A auto-celebração determinava a escolha de novos dirigentes, que passavam a ocupar cargos administrativos de direcção apenas escudados com a aura de combatentes de liberdade da pátria. Filinto de Barros espelha em seu texto uma atitude bastante generalizada naquela época, quando o povo ainda estava imbuído da euforia da enorme façanha que fora a expulsão dos tugas, deixando uma das suas personagens exclamar, como justificativa para a falta de reacção ou de protesto do povo Não te esqueças que chefe é chefe. Filinto de Barros nasceu em Bissau a 28 de Dezembro de 1942. Entrou para as fileiras do PAIGC na Zona Zero, isto é em Bissau."

O próprio pai do artista, José Carlos, em quem se inspira para o seu tema Kal Koldadi do seu novo álbum, onde fala de prostituição e de exploração feminina, foi bem claro na sua crítica, no tema Apili, e por isso, devido ao seu espírito inconformado e contestatário, sofreu a marginalização por parte do regime, cuja mediocridade não tolerava a crítica (apesar de ter sido um dos principais recrutadores do Partido na Zona Zero, contornando a vigilância da PIDE e aproveitando os concertos que dava, e a consideração que estes lhe granjeavam). Em que medida esta incapacidade de compreensão mútua entre os dois mundos não se deve a uma pseudo-elite incapaz, que nunca soube nem quis dar a mão aos seus irmãos para os elevar promovendo a igualdade de oportunidades, preferindo sempre a aparência da superioridade (mascarando na verdade os seus complexos de inferioridade), para melhor os excluir e defender os seus interesses, parasitários de uma verdadeira sociedade? Leiam-se os excertos de opinião de Gervasio Silva Lopes aqui publicados há bem pouco tempo...

Voltando à entrevista de Remna Schwarz à Lusa "Há muitos interesses para não haver acordo para sair daquela tormenta política. A Guiné-Bissau tem uma diversidade muito grande, muitas riquezas internas, e a partir do momento que houver estabilidade política vai ser um grande drama para os países vizinhos (...) Há um desentendimento muito forte que não tem sentido. A Guiné-Bissau é um dos países onde temos mais discursos intervenientes, mais pessoas engajadas política e socialmente. (...) Há um cansaço, uma insatisfação enorme porque as coisas não estão a funcionar. (...) Tenho muita fé que vamos mudar a situação e vai ser já, já. Estamos num momento crucial da nossa História, num momento em que ou acaba tudo ou acaba tudo" (entenda-se, ou acabamos com a situação, ou a situação acaba connosco). 

Chegados ao Ponto Zero (que, segundo atesta Tesla, tem um grande potencial energético), como dizia Kumba Yalá, "ou vivemos felizes juntos, ou morremos todos".

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